O
TELEFONEMA
- Alô.
- Gata, estou atrapalhando?
- Claro que não. Fale. Eu já estava de saída do escritório, mas ainda tenho alguns minutinhos.
- Tesouro, estou indo ao clube com o Júnior para darmos um passeio. Queria tanto que você viesse com a gente... Vamos? Seria ótimo curtirmos esse finalzinho de tarde juntos. A gente sempre se diverte tanto nesses passeios...
A
gente quem ? Pensou ela, franzindo a testa. A última ida ao clube,
infelizmente, não continha nenhuma cena de diversão. Muito pelo
contrário, as lembranças que permeavam o seu imaginário eram até
grotescas; um homem com quase 100 quilos, fantasiado de tenista
profissional, ensaiando raquetadas e voleios mil, como se Wimbledon
fosse mesmo ali; enquanto ela, coitada, mão de obra não
qualificada, corria, depois de um dia cheio de trabalho, atrás de
Júnior, aquele pobre selvagem, ainda por cima, sobre um scarpin!
- Adoraria,
disse ela sem muita empolgação e com uma certa ironia - mas preciso
ir para casa e ajeitar umas coisas para a nossa viagem. E por falar
em viagem, você ainda lembra que temos uma para a Itália semana que
vem, não lembra? Sagazmente, aproveitou o ensejo para mudar de
assunto.
-
Ai princesa, claro que lembro. Quem ouve assim pensa que sou um
namorado desinteressado, que dou pouca importância para os nossos
combinados.
-
Que bom! Espero que dessa vez nada aconteça, falou com delicadeza.
- Não entendi, linda. Parece
até que a última vez que desmarcarmos a viagem foi por um
infortúnio qualquer. Será que você não se recorda da maré de
azar que vitimou o Júnior naquela mesma semana?
-
Como esquecer? Foi o assunto mais falado por dias. A irritação
dela já era latente. Ele, contudo, não percebia e continuava a
justificar o injustificável.
- Pobre
do meu garoto, tão sem sorte o coitado. Suspensão da escola e
braço quebrado, tudo de uma só vez. Gastei tubos de dinheiro com
psicólogo, quarto novo e viagem pra ele e a babá. Quase
traumatizaram o menino! Lembra?
- Claro!
Mas sem querer ser insistente, gostaria apenas que você entendesse,
de uma vez por todas, que azar é acaso, algo que acontece
independentemente da nossa vontade e para o qual não contribuímos.
O que sucedeu com o Júnior não foi casualidade, tendo em vista
que...
-
Tendo em vista o quê, Raquel? Não estou entendendo esse seu
papinho moralista a respeito de como devo criar o meu Júnior. Você
não tem filhos, nem mesmo tem a maternidade remotamente em seus
planos e agora vem ensinar padre-nosso a vigário, tenha santa
paciência. Pra você, a vida se resume a processos, audiências e
escritório. Nem sei como sobrou tempo para encaixar na sua agenda um
namorado! Agradeça a Deus, eu ter aparecido na sua vida. Um homem
como eu...
- Êpa! Pode
parar! Ela não poderia mais perder tempo com aquilo. O seu limite
havia chegado ao fim e como se recém acordada de um pesadelo,
continuou: - Já chega! Cansei dos seus rompantes de prepotência e
arrogância. Agora você vai me ouvir!
- Mas
Raquelzinha...
- Raquelzinha
coisa nenhuma. Calado! Até onde lembro, Júnior quebrou o braço e
foi suspenso da escola porque subiu na carteira para gritar com a
professora. E isso, meu caro, não é azar é consequência.
- Mas
Raquelzinha...
- Eu
ainda não terminei. Ao contrário do que você pensa, seu filho não
precisa de mais viagens, mais presentes ou mais mimos. Ele não tem
que ser levado a acreditar que o mundo é seu algoz e que todos
estão contra ele. Pare de tratá-lo como vítima! Júnior precisa
somente de duas coisas: amor e limite, coisas básicas que pelo
jeito, você não tem condições de dar, não é mesmo?
- Mas
Raquelzinha...
- E
antes que eu me esqueça, o fato deu não ter filhos não me
desautoriza a falar sobre o assunto e outra, não falar em ter
filhos, não quer dizer que eu não pense ou não deseje um. Apenas
não achei adequado falarmos nisso com 3 meses de namoro; e, sendo
ainda mais sincera, não vislumbrei em você os pré-requisitos básicos de
um possível candidato. Pronto, falei!
- Agora
você pegou pesado, Raquelzinha!
- E
tem mais, diferentemente do que você pensa, filho não é
passatempo, que a gente só pega quando quer ou tá afim, muito
menos meio de inclusão e ascensão social. Filho é dedicação,
envolvimento, compromisso, prioridade e detalhe, para o resto da
vida, coisa muito séria, você consegue entender isso ou vou ter
que desenhar?
- Mas
Raquelzinha...
- Passar
bem, Otávio Augusto!
- E
o clube, Coração?